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terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Genética Não é Espelho



Nascer com o patrimônio genético idêntico não significa que as pessoas crescerão tendo o corpo, mente e doenças iguais. A descoberta de que os hábitos e o estilo de vida mudam o comportamento dos genes está na raiz de uma revolução extraordinária para a medicina. Ela ajudará na criação de remédios personalizados, capazes de alterar o genoma para deter o desenvolvimento de doenças e de transtornos psíquicos.

Revista Veja - por Gabriella Carelli

O sequenciamento completo do genoma humano, obtido há seis anos, ao cabo de um esforço coletivo de pesquisadores americanos, ingleses, canadenses e neozelandeses, foi uma das mais espetaculares conquistas científicas de todos os tempos. Do estudo resultou um mapa com a posição de cada uma das múltiplas variações dos genes, os tijolos moleculares que se combinam no coração das células para definir as características físicas dos seres humanos. Cada pessoa tem de 20.000 a 25.000 genes. Com exceção dos gêmeos unívitelinos, não existem dois seres humanos com a mesma combinação genética. A cor dos olhos, a tendência para engordar, o temperamento. a propensão para determinadas doenças são características definidas mais ou menos fortemente pelas bases químicas dos genes. Mapear o genoma humano foi o começo, e não o fim, de uma ambiciosa linha de investigação. O mundo científico ficou ainda mais complexo depois do mapeamemo genético feito há seis anos, quando os pesquisadores passaram a se dedicar a entender a função de cada um dos genes e, o supremo desafio, explicar as razões pelas quais eles às vezes exercem suas funções e outras parecem hibernar preguiçosamente nos cromossomos sem nunca ser ativados - ou por que mesmo pessoas com estoque hereditário idêntico, como os gêmeos univitelinos, podem carregar um mesmo gene, mas que se expressa de maneira totalmente diferente num e noutro organismo.
Para efeito de diagnóstico, prevennção e tratamento de doenças, o que se descobriu depois do mapeamemo do genoma constitui o começo da verdadeira revolução biológica. Equivale à abertura de uma nova porta para o conhecimento humano. Já se sabia que os fatores ambientais, ou seja, as experiências, os hábitos e o estilo de vida também influem nesses processos. Não se tinha ideia, porém, de como se dava essa influência. Agora, não apenas se encontraram os mecanismos de ação dos fatores ambientais como se constatou que eles são muito mais atuantes na ativação ou desativação dos genes do que se pensava. Isso abre frentes extraordinárias para a medicina. No futuro próximo, entre outros recursos, será possível desenvolver remédios personalizados, destinados a fazer interferências pontuais no genoma de cada paciente.
O tipo de alimentação, o nível de atividade física, o tabagismo, o uso de medicamentos, as experiências emocionais - todos esses fatores agem para "ligar" ou "desligar" determinados genes, ou seja, torná-los ativos ou conservá-Ios adormecidos. Nos dois casos, ocorrem alterações físicas e psicológicas em seu portador. Essas mudanças podem ser para o bem ou para o mal, atenuando sintomas de doenças ou provocando seu desenvolvimento. Os gatilhos que ativam ou desativam os genes são acionados por trechos do genoma que até pouco tempo atrás os cientistas tinham por inúteis - o chamado DNA lixo. Agora se sabe que eles servem de elemento de ligação entre os fatores ambientais e os genes. Esse ramo da genética que estuda a interação entre o ambiente e o genoma é conhecido como epigenética. O geneticista americano Randy Jirtle, da Universidade Duke, usa uma analogia para explicá-lo. Disse Jirtle a VEJA: "Imagine o material genético existente no organismo como um computador. O genoma é o hardware. Para que a máquina funcione, é preciso ter softwares. Os mecanismos epigenéticos são os softvwares. Eles produzem resultados distintos rodando sobre um mesmohardware, ou seja, o genoma herdado dos pais".
Até recentemente, acreditava-se que as alterações epigenéticas ocorriam apenas na fase de desenvolvimento fetal. Enquanto o embrião se forma, a ação dos genes pode ser modificada pelos nutrientes que chegam a ele pelo cordão umbilical. É por isso que se aconselha às mães a ingestão de ácido fólico, uma das variantes da vitamina B. O consumo dessa substância nos três primeiros meses de gravidez, pode desligar genes relacionados às más-formações congênitas. Agora. sabe-se que as mudanças no genoma acontecem ao longo da vida. A maior prova disso está no estudo feito com gêmeos univitelinos. Idênticos, eles possuem o mesmo código genético. No entanto, os genomas de ambos se tornam diferentes no decorrer dos anos, o que comprova a ação do ambiente no código genético. O estudo mais significativo sobre a influência da epigenética em gêmeos foi feito pelo Centro Nacional de Investigações Oncológicas da Espanha. Os geneticistas avaliaram quarenta pares de gêmeos univítelinos, com idade entre 3 e 74 anos. Os pares de gêmeos mais jovens, e também aqueles que tinham o mesmo estilo de vida, possuíam genomas muito semelhantes. Em pares de gêmeos mais velhos, principalmente aqueles com hábitos distintos, os cientistas encontraram diversas diferenças nos padrões genéticos. "E impressionante como uma pequena diferença na vivência ou mesmo na dieta pode fazer um dos gêmeos desenvolver um câncer e o outro, não", disse a VEJA o geneticista Moshe Szyf, da Universidade McGill, no Canadá.
Ao apontarem para a cura de doenças atacando-as na escala infinitesimal dos genes, as novas descobertas da ciência representam um novo marco na linha de pensamento iniciada no século XIX pelo naturalista inglês Charles Darwin, autor da teoria da evolução. Darwin foi contemporâneo do monge agostiniano austríaco Gregor Johann Mendel (1822-1884), mas, certamente, não teve acesso às pesquisas pioneiras dele sobre a transmissão de caracteres hereditários em ervilhas. Mendel só viria a ter seus méritos reconhecidos mesmo quase meio século depois da morte de ambos, quando os resultados de suas pesquisas, de tão exatos, passaram a ser tidos como leis biológicas. Sem Mendel e, obviamente, sem saber da existência do DNA dos cromossomos ou dos genes, Darwin formulou um mecanismo de transmissão de caracteres entre gerações que se baseava no que ele chamou de "células gêmulas". Essas células viajariam pelo corpo até os órgãos sexuais e de lá passariam às gerações seguintes. O mecanismo pelo qual a informação genética é transmitida através das gerações finalmente foi elucidado em 1953, com a descoberta da dupla-hélice do DNA pelos cientistas James Watson e Francis Crick. Essa descoberta abriu caminhos para a fertilização assistida, para a clonagem de seres vivos e para a produção de alimentos transgênicos. Também permitiu os testes de paternidade e o teste do pezinho em recém-nascidos - exame capaz de detectar anomalias e evitar o retardo mental, a cegueira e a surdez. A nova fronteira da genética é estabelecer de forma precisa como o ambiente influencia os genes.
Até agora, descobriu-se que os mecanismos epigenéticos podem modificar os genes por meio de três processos. O mais comum é a metilação, que ocorre quando um conjunto de partículas de hidrogênio e carbono se agrupa na base de alguns genes e impede que eles sejam ligados. Mais de 70% dos genes de uma pessoa podem ser ativados ou desativados dessa forma. Uma pesquisa recente da Universidade da Califórnia ilustra como ocorre a metilação - nesse caso, como resultado de mudança de hábitos. Os pesquisadores recrutaram trinta pacientes com câncer de próstata em estágio inicial e os submeteram por três meses a um programa que incluía dieta rica em vegetais e pobre em gorduras, além de exercícios físicos moderados. Depois desse período, os pacientes passaram por uma série de exames de DNA. Os testes mosIraram que as medidas adotadas não só diminuiram a atividade de genes ligados ao tumor como aumentaram a expressão daqueles envolvidos na capacidade do organismo de enfrentá-lo.
Os processos epigenéticos também podem ocorrer pela modificação das bístonas, as linhas que envolvem o DNA e formam um novelo. De acordo com os estímulos externos, esse novelo pode se tornar mais frouxo, o que causa a ativação do gene. Já se sabe que o lúpus e alguns tipos de câncer podem surgir em decorrência desse processo. O terceiro fenômeno epigenético consiste na ação dos micro-RNAs, um conjunto de nucleotídeos que percorre o genoma ligando e desligando os genes. As primeiras aplicações da epigenética na famacologia prenunciam a revolução que está por vir. Já se encontra à venda uma droga, a azacitidine, capaz de desbloquear um gene silenciado pelo processo de metilação e, assim, tratar a leucemia. Em fase de teste nos laboratórios, há pelo menos oito medicamentos que revertem marcas epigenéticas. "As principais novidades utilizam os micro-RNAs, que são capazes de silenciar em até 70% a expressão de um gene", diz o geneticista Carlos Menck, da Universidade de São Paulo.
Apesar de todos os avanços na ciência da genética, apenas dentro de uma ou duas décadas será possível prevenir o aparecimento de doenças auscultando os genes, ou produzir remédios personalizados que ajam sobre o genoma específico de um paciente. Os cientistas estão ainda engatinhando no conhecimento de como ligar e desligar os genes. Já se conseguiu estabelecer conexões entre determinados genes e o estilo de vida, principalmente no que diz respeito à alimentação. Uma dieta rica em vitamina B pode reverter a modificação de histonas que causam perda da memória e das funções motoras. O resveratrol, uma substância encontrada no vinho tinto, promove uma espécie de limpeza nas histonas, o que muda a expressão dos genes do envelhecimento. Apesar do êxito de experiências pontuais para alterar o comportamento dos genes por meio de mudanças na alimentação, ainda não há conhecimento suficiente para estabelecer relações cientificamente comprovadas de causa e efeito. Não existe garantia de que uma simples mudança na dieta vá alterar o funcionamento de determinado gene e evitar o desenvolvimento de um câncer.
Desde o sequenciamento do genoma humano, tornou-se comum a linha de pesquisa que compara trechos de genomas de pessoas portadoras de determinada doença com os mesmos trechos de pessoas saudáveis. O objetivo é descobrir quais genes são responsáveis pela doença. Há duas semanas, uma série de artigos publicados na revista médica americana New England Journal of Medicine coloca em xeque a eficácia dessas pesquisas, alegando que as variações genéticas que elas detectam pouco esclarecem sobre as ligações entre os genes e as doenças. Num dos artigos, o geneticista David Goldstein, da Universidade Duke, diz que as doenças mais comuns provavelmente são resultado de 1.000 variações genéticas, e não de apenas dez. como pensa a maioria dos pesquisadores. Goldstein é um dos cientistas que propõem uma nova linha de pesquisa para descobrir as ligações entre os genes e as doenças - decodificar o genoma inteiro de alguns pacientes, em vez de comparar trechos de genomas de pessoas doentes e saudáveis. Diz a geneticisIa Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo: "Os avanços tecnológicos permitiram a observação do genoma de forma detalhada e precisa. As descobertas são impressionantes. Conseguimos informações preciosas sobre os genes, as marcas epigenéticas e as mudanças do genoma ao longo da vida, o que dá início a uma revolução. Mas ainda não temos conhecimento científico suficiente para saber o que fazer com todas essas informações".
A comparação entre trechos de genomas de pessoa" doentes e sadias é justamente o método usado na maioria dos testes genéticos feitos sob encomenda, que se tornaram uma mania nos Estados Unidos. Esses testes servem apenas como alerta, indicando predisposição a determinadas doenças, o que não significa que elas vão se desenvolver. Neste ano, os laboratórios devem oferecer mapeamentos completos de genoma por 5.000 dólares. São de pouco uso, já que a ciência não dispõe de instrumentos para interpretar todas as informações contidas no genoma. "Muitos testes desse tipo servem apenas para criar uma neurose em torno da genética. Só nos próximos cinco ou dez anos conseguiremos utilizar todos esses achados para melhorar as condições físicas e mentais das pessoas", diz Mayana Zatz. A geneticista lidera no momento um projeto pioneiro, a formação de um banco de amostras de material genético de idosos totalmente saudáveis, que não desenvolveram nenhuma das chamadas doenças da terceira idade. As amostras serão guardadas e, num prazo provável de vinte anos, usadas para entender melhor a causa de doenças e, assim, combatê-Ias.
Um dos pontos mais controversos das novas descobertas da genética diz respeito à hereditariedade. As mudanças epigenéticas causadas pelos hábitos e pelo modo de vida podem ser repassadas para as gerações futuras? "De modo geral, essas marcas desaparecem na fecundação do óvulo pelo espematozoide", diz o geneticista Salmo Raskin, da Sociedade Brasileira de Genética Clínica. Estudos com animais, porém. mostram que algumas marcas epigenéticas podem ser transmitidas aos filhotes. Numa pesquisa comandada pelo geneticista Michael Skinner, da Universidade de Washington, ratos foram expostos a um tipo de inseticida. A substância causou a metilação de dois genes relacionados à produção de esperma e os animais passaram a produzi-Io em menor quantidade. A deficiênncia se perpetuou por quatro gerações. Mais de 90% dos machos descendentes das cobaias apresentavam os mesmos problemas, sem nunca terem sido expostos ao inseticida. Não se deve confundir a transmissão dessas marcas epigenéticas com o lamarckismo, a teoria, que se provou falsa, segundo a qual características adquiridas ao longo da vida podem ser transmitidas aos descendentes. "Ninguém vai fazer ginástica, criar músculos e dar à luz um bebê mais forte", explica Salmo Raskin. "A transmissão de marcas epigenéticas é raríssima. Assim como nas mutações, ela acomece quando há alterações em células germinativas", ele completa. A próxima revolução no conhecimento da genética está apenas começando.

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